Nota da ADEPOL/RJ:
Leia abaixo o douto voto do Em. Ministro do Supremo Tribunal Federal César Peluzo dado no Recurso Extraordinário 593727-MG, com Repercussão Geral.
O Patrono da causa em Brasília é o Advogado Wladimir S. Reale que também exerce a Presidência da ADEPOL/RJ e a Vice-Presidência Jurídica da ADEPOL DO BRASIL.
Não há previsão constitucional para o Ministério
Público exercer investigações criminais
Ministro Cezar Peluso do STF profere voto histórico em julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 593727. Nas próximas páginas, confira trechos de sua sustentação que deixam claro não há no ordenamento jurídico nenhuma dúvida de que não compete ao MP exercer atividades de polícia judiciária.
No caso, a questão nodal está em saber se o Ministério Público possui, concorrente ou concomitantemente, atribuição constitucional para, sozinho, de maneira direta e autônoma, realizar também atos de investigação e instrução, na chamada primeira fase da persecução penal. O Tribunal ainda não firmou posição sobre o tema.
A discussão do tema passa pela necessária delimitação constitucional do que sejam (i) função, (ii) competência e (iii) procedimento. Entendo que este proceder metodológico nos conduz de forma mais clara e serena à solução constitucional do tema, objeto teórico da discussão central da causa. Por isso, entro à análise da função e da atividade dos órgãos da persecução, sempre com os olhos voltados à Constituição da República.
As funções e as competências, tanto do Ministério Público, como da Polícia, como já se viu, vêm delimitadas na Constituição da República. O Ministério Público está regulamentado na Seção I do Capítulo IV – Das funções essenciais à Justiça –, do Título IV – Da organização dos Poderes. Segundo o art. 127, inc. I, da Constituição, é “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. No art. 129, estão taxativamente arroladas as funções institucionais do Ministério Público.
Friso, logo, que não existe, em nosso ordenamento constitucional, norma expressa que permita ao Ministério Público realizar investigação e instrução criminal preliminar ou preparatória da ação penal de conhecimento, de caráter condenatório. Pretende-se inferir tal atribuição à leitura conjugada da Constituição da República, do Código de Processo Penal, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público e da Lei Orgânica do Ministério Público da União.
Os argumentos alinhavados para sustentar a legitimidade de investigações criminais pelo Ministério Público – denominadas “investigações preliminares”, “procedimentos investigatórios preliminares”, ou “procedimentos administrativos criminais” - podem ser assim resumidos:
(i) por ser o Ministério Público o titular da ação penal de conhecimento, de caráter condenatório e de iniciativa pública (art. 129, inc. I, da Constituição Federal), teria, por conseguinte, em razão da chamada teoria dos poderes implícitos, poder de realizar diligências investigatórias e instrutórias diretamente, quando entendesse necessário; (ii) para tanto, haveria legitimação constitucional, fundada no art. 129, inc. IX, da Constituição da República, e base legal, revelada pelo art. 5º, inc. VI e § 2º, e art. 8º, inc. V, da Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993. Os poderes de investigação do Ministério Público decorreriam da amplitude da norma inserida no inc. IX do art. 129 da Constituição da República, que lhe faculta o exercício de “outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade”. (iii) o inc. VI do art. 129 da Constituição teria ido além, atribuindo ao Ministério Público o poder de expedir notificações e requisitar informações e documentos nos procedimentos administrativos de sua competência, na forma da lei complementar respectiva, a Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, ou, ainda, do art. 26, inc. I, alíneas a e b, da Lei nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público); (iv) inexistiria o monopólio da polícia para a realização da primeira fase da persecução penal. O art. 144 da Constituição da República teria tido o só escopo de distribuir as atribuições entre as diversas polícias – federal, rodoviária, ferroviária, civil e militar. O parágrafo único do art. 4º do Código de Processo Penal admite, expressamente, que autoridades administrativas, diversas das de polícia judiciária, possam exercer função investigatória, como acontece, v.g., no âmbito das Comissões Parlamentares de Inquérito; (v) sustenta-se, pois, que não faria sentido manter o titular da ação penal de iniciativa pública como mero espectador das atividades desenvolvidas pela polícia. Argumenta-se, ao depois, que não é esse o modelo adotado nos sistemas processuais penais europeus contemporâneos. Além disso, admitindo-se formulação de denúncia que prescinda de inquérito policial, como o autoriza o art. 12 do Código de Processo Penal, deveria também poder o Ministério Público, por boa razão lógica, investigar direta e autonomamente.
Argumenta-se que, sendo o Ministério Público o titular da ação penal de iniciativa pública (art. 129, inc. I, da Constituição da República), estaria, por consequência, em razão da teoria dos poderes implícitos (quem pode o mais, pode o menos), autorizado a realizar diligências investigatórias, quando necessário. Aduz-se, nesse sentido, que tais poderes de investigação decorreriam da abertura dada pela norma inscrita no inc. IX do art. 129 da Constituição da República.
O que extraio, porém, dessa norma, é exatamente o oposto. Penso que o texto constitucional deixa muito claro que não constitui função do Ministério Público apurar infrações penais mediante atos próprios de investigação e de instrução, na primeira fase da persecução penal.
O art. 129 da Constituição Federal, ao atribuir ao Ministério Público certas funções, fê-lo empregando a locução no sentido de competência, entendida como autorização de exercício do poder (atividade) para proteção dos cidadãos, sem cometer-lhe função nem competência de apurar infrações penais. É o que se tira ao disposto no inciso. I: “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I. Promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei.”
Como se vê logo sem grande esforço, o preceito cuida apenas da legitimidade para promover a ação penal de iniciativa pública, sem menção alguma à função de conduzir inquérito, nem à apuração preliminar de infrações penais. Não custa, aliás, observar que a Constituição da República até relativizou o monopólio do Ministério Público no tocante à legitimação para mover ação penal de iniciativa pública, ao estabelecer, no art. 5º, inc. LIX, que “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”.
Ademais, isenta leitura do disposto no inc. III do art. 129, onde se estatui que são funções institucionais do Ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”, demonstra, de modo nítido, que, quando pretendeu atribuir função investigativa ao Ministério Público, a Constituição o fez em termos expressos.
Provê, ainda, o inc. VIII do art. 129:
“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...) VIII. Requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais.”
Esta outra norma revela, às inteiras, que, longe do que poderia sugerir visão apressada do inciso III, a Constituição da República discerne muito bem, das outras fases da chamada persecução penal, a primeira ou preliminar, correspondente ao escopo do inquérito policial, cuja condução não incluiu entre as funções deferidas ao Ministério Público. Não só não a incluiu, como lhe exigiu, antes, que, quando deva, requisite, evidentemente a outro órgão, diligências investigatórias e instauração de inquérito policial, sempre indicando os fundamentos jurídicos de suas manifestações.
E por que lhe não impôs igual zelo ao outorgar a função de promover o inquérito civil? A única resposta jurídica sensata está em que a Constituição Federal timbrou em distinguir e separar, entre dois órgãos, polícia judiciária e Ministério Público, as funções respectivas de apurar infrações penais e a de acusar em juízo, diversamente do que dispôs sobre o inquérito civil, na óbvia pressuposição da grave, mas necessária e regulamentada restrição que a persecutio criminis representa aos direitos fundamentais. Daí vem, não só a distinção e a separação daquelas funções, mas ainda a necessidade de fundamentação jurídica, a qual, note-se mais uma vez, não é sequer demandada à instauração de inquérito civil (art. 129, inc. III, da Constituição da República).
E, em eloquente coerência e disciplina sistemática, ao excluir da esfera de atuação institucional do Ministério Público a função e apuração prévia de infrações penais, a qual delegou, expressa e exclusivamente, à Polícia, incumbiu o Ministério Público do relevante controle externo da atividade policial, demonstrando ipso facto que, pela razão já exposta de necessário resguardo aos direitos fundamentais do cidadão contra eventuais abusos, as investigações preliminares da prática de delitos postulam fiscalização heterônoma. Veja-se: “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...) VII. Exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no inciso anterior.” Do conjunto dessas provisões constitucionais, vê-se, à margem de qualquer dúvida razoável, que a Constituição não conferiu ao Ministério Público a função de apuração preliminar de infrações penais, de modo que seria fraudá-las todas (fraus constitutionis) extrair a fórceps tal competência à leitura isolada do disposto no inc. IX do art. 129, onde consta, dentre suas funções institucionais, a de “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”.
E isto percebeu-o, com seu habitual descortino, JOSÉ AFONSO DA SILVA, ao repudiar, neste caso, invocação da doutrina dos poderes implícitos:
“[...] poderes implícitos só existem no silêncio da Constituição, ou seja, quando ela não tenha conferido os meios expressamente em favor do titular ou em favor de outra autoridade, órgão ou instituição. Se ela outorgou expressamente a quem quer que seja o que se tem como meio para atingir o fim previsto, não há falar em poderes implícitos. Como falar em poder implícito onde ele foi explicitado, expressamente estabelecido, ainda que em favor de outra instituição?
[...]
No caso sob nossas vistas, a Constituição se ocupou do tema, conferindo a investigação na esfera penal à polícia judiciária, logo, ela não cabe a nenhum outro órgão ou instituição, nem, portanto, ao Ministério Público”.
No artigo 144, § 1º, a Constituição estabelece: “§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras
infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; [...] IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.” No art. 144, § 4º, determina: “§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.”
A transparência semântica desses enunciados evidencia que a Constituição da República, de modo expresso, cometeu a função e a competência para apuração de infrações penais tão somente às polícias (federais e civis), sem as partilhar, em texto e modo algum, com o Ministério Público, cujas atribuições, posto conexas, são distintas. E sua manifesta ratio iuris diz com a intuitiva necessidade de delimitação e distribuição, entre organismos públicos diversos, dos poderes inerentes a todas as atividades e fases da persecução penal, com vistas à estrita observância da lei e à consequente proteção dos cidadãos.
É esta a razão substantiva por que não vejo como a Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) ou a Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de
1993 (Lei Orgânica do Ministério Público da União) poderiam, sem incorrer em grossa inconstitucionalidade, ter atribuído também ao Ministério Público funções e competências que, reservadas às instituições policiais, lhe foram negadas pela Constituição Federal. Mas o fato é que lhas não atribuíram. Antes, o primeiro desses diplomas legais, a Lei Complementar nº 75, de 1993, só reafirma as dicções constitucionais: “Art. 7º Incumbe ao Ministério Público da União, sempre que necessário ao exercício de suas funções institucionais: I - instaurar inquérito civil e outros procedimentos administrativos correlatos;II - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar, podendo acompanhá-los e apresentar provas; III - requisitar à autoridade competente a instauração de procedimentos administrativos, ressalvados os de natureza disciplinar, podendo acompanhá-los e produzir provas.”
É verdade que, no artigo subsequente, lhe prevê poderes de realização direta de diligências instrumentais ou instrutórias. Mas basta atentar no expressivo fraseado que compõe a disposição do caput para arredar logo qualquer tentação de entrever, na discriminação desses poderes, outorga de função e competência para apuração preliminar de infrações penais. Leia-se: “Art. 8º Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência: I - notificar testemunhas e requisitar sua condução coercitiva, no caso de ausência injustificada; II - requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta; III - requisitar da Administração Pública serviços temporários de seus servidores e meios materiais necessários para a realização de atividades específicas; IV - requisitar informações e documentos a entidades privadas; V - realizar inspeções e diligências investigatórias; VI - ter livre acesso a qualquer local público ou privado, respeitadas as normas constitucionais pertinentes à inviolabilidade do domicílio; VII - expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que instaurar; VIII - ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública; IX - requisitar o auxílio de força policial.”
Como ressalta vistoso ao enunciado normativo, a previsão de tais poderes, longe de instituir conjunto de atribuições autônomas, serve apenas como instrumento operacional para o exercicio das atribuições do Ministério Público, nos procedimentos de sua competência, a qual é definida pela Constituição Federal e por normas subalternas que lhe sejam compatíveis, entre as quais não se encontra nem descobre a de exercer poder de polícia judiciária. E escusa advertir que sustentar coisa contrária, recoberta por qualquer etiqueta linguística, sobre caracterizar interpretação forçada do texto, cujos limites léxicos não toleram distorção semântica, a qual seria já contra legem, implicaria fraude escancarada à Constituição da República.
Não se tira tampouco outra conclusão ao disposto no art. 26 da Lei nº 8.625, de 1993, cujas proposições, de igual modo, só confirmam os preceitos constitucionais e as regras correspondentes da Lei Complementar nº 75, do mesmo ano:“Art. 26. No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá:I - instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los: a) expedir notificações para colher depoimento ou esclarecimentos e, em caso de não comparecimento injustificado, requisitar condução coercitiva, inclusive pela Polícia Civil ou Militar, ressalvadas as prerrogativas previstas em lei; b) requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da administração direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; c) promover inspeções e diligências investigatórias junto às autoridades, órgãos e entidades a que se refere a alínea anterior; II - requisitar informações e documentos a entidades privadas, para instruir procedimentos ou processo em que oficie; III - requisitar à autoridade competente a instauração de sindicância ou procedimento administrativo cabível; IV - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial e de inquérito policial militar, observado o disposto no art. 129, inciso VIII, da Constituição Federal, podendo acompanhá-los.”
Do ponto de vista específico do ordenamento institucional, não subsiste, pois, nenhuma dúvida de que não compete ao Ministério Público exercer atividades de polícia judiciária, as quais, tendentes à apuração das infrações penais, seja lá o nome que se lhes dê aos procedimentos ou aponha na capa dos autos, foram, com declarada exclusividade, cometidas às polícias, federal e civis, pela Constituição da República, segundo cláusulas pontuais do art. 144.
No quadro das normas e das razões constitucionais, a instituição que investiga, não promove a ação penal, e a que a promove, não investiga. Não por acaso, senão por deliberada congruência, deram-se ao Ministério Público, no art. 129, VII, da Constituição, como já enfatizei, a função e a competência de exercer o controle externo da atividade policial, por ser intuitivo que quem investiga não pode ao mesmo tempo controlar a legalidade das investigações.
Não me escapa a importância das preocupações sobre eventual necessidade, ditada por exigências da disforme realidade brasileira, de mudança do regime adotado, na matéria, pela constituição da República, e, em particular, sobre situações extremas, como a de supostos ilícitos praticados por policiais, a cujo respeito se questiona se a autoridade policial teria a isenção suficiente para sua apuração rigorosa. A estas responde o próprio sistema jurídico-constitucional, em que se entregou ao Ministério Público o conspícuo dever de controle externo da atividade policial, mediante exercício de todos os poderes indispensáveis ao formal escrutínio da regularidade das investigações oficiais da polícia mesma.
Àquelas observa-se, mais uma vez, que não é papel desta Corte atuar como legislador positivo, inovando, sob pretexto de mera interpretação, o teor de normas constitucionais ou legais destituídas de qualquer vício, para remediar eventuais disfunções orgânicas. Recordo, ao propósito, que tramita, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 8.045/2010, no qual se propõem regras gerais para a investigação criminal, sem, contudo, extinguir a figura do inquérito policial. Foi-lhe agora apensado o Projeto de Lei nº 7.987/2010, de autoria do deputado MIRO TEIXEIRA e cujo texto prevê: “Art. 9º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. § 1º A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função. § 2º É atividade exclusiva da policia judiciária a apuração de infração penal, sendo vedado ao Ministério Público realizar diretamente investigações no âmbito de procedimento criminal.”
Igual sentido guarda a PEC nº 37-A/2011, de autoria do deputado LOURIVAL MENDES, a qual acresce ao art. 144 o § 10, onde se declara que a apuração das infrações penais incumbe, privativamente, às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal. Outro dos fundamentos da tese oposta nasce do art. 4º, § único, do Código de Processo Penal, cujo cânone admite, é verdade, que autoridades administrativas estranhas à organização policial recebam, da lei, competência para exercício da função de policia judiciária.
Mas, aqui, é de concordar logo com a irrefutável objeção de JOSÉ AFONSO DA SILVA, quando pondera: “Argumenta-se que a Constituição não deferiu à Polícia Judiciária o monopólio da investigação criminal. É verdade, mas as exceções estão expressas na própria Constituição e nenhuma delas contempla o Ministério Público”.
Entre as essas exceções expressas está, por exemplo, o caso das Comissões Parlamentares de Inquérito, que são investidas de poderes investigatórios próprios das autoridades judiciais, inclusive os de polícia judiciária, ex vi do art. 58, § 3º, da Constituição da República.
E a objeção, já de si intransponível, não exclui a crítica da não menor impropriedade de se pretender interpretar a Constituição da República sob a ótica da legislação infraconstitucional, a fortiori diante da larga distância cronológica, histórica, ideológica e política que separa a Constituição de 1988 e o Código de Processo Penal de 1941, como se este pudera legitimar atribuição de poderes que aquela repudia! O que é de mister, aliás, em casos como este, e não raro tem-no feito esta Corte, é, antes, reconstruir a interpretação do velho arcabouço processual penal, declarando-lhe as incompatibilidades com o ordenamento constitucional superveniente.
Hoje, a chamada formação da culpa, enquanto fase destinada à apuração do fato que se desenhe ilícito e típico, e de sua autoria, coautoria, ou de eventual participação, como procedimento preparatório à instauração da ação penal, se dá, primordialmente, no inquérito conduzido pelas autoridades policiais, como estatui o art. 4º, caput, do Código de Processo Penal.
Esta é a regra; não, porém, absoluta. É que convém lembrar a existência válida dos institutos do inquérito policial militar, do inquérito administrativo stricto sensu, do inquérito civil, atinente à ação civil pública, do inquérito parlamentar e, até, da modalidade de formação da culpa nos crimes contra a propriedade imaterial. Há, portanto, nas três esferas de Poder, distintas formas que ou são já, por natureza, preliminares de persecução penal, como, v. g., o inquérito policial militar, ou que, não o sendo, podem, na prática, funcionar como tais, e todas elas lícitas.
Na órbita da administração pública, os processos administrativos, disciplinares ou não, podem dar ensejo a ações penais de conhecimento, de natureza condenatória, desde que revelem, em razão do fenômeno jurídico da múltipla incidência normativa, elementos suficientes a acusação penal formal. Nisso ninguém põe dúvida.
Sabe-se, nesse sentido, que, em relação a crimes contra a ordem tributária, a ordem econômica ou o sistema financeiro nacional, não é raro que procedimento administrativo, oriundo do Fisco, de órgão do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, do Banco Central do Brasil ou da Comissão de Valores Mobiliários, funcione como legítimo procedimento cujo resultado seja capaz de instruir e fundamentar a instauração da ação penal.
De igual modo, nas ações penais dirigidas a apurar o cometimento de crimes funcionais, os dados de processos administrativos figuram, no mais das vezes, como suporte bastante da denúncia, substituindo o inquérito policial, nos termos do art. 513 do Código de Processo Penal.
Também em casos de crime contra o meio ambiente, procedimentos realizados por órgãos do Sistema Nacional do Meio Ambiente podem servir de base à propositura da ação penal, assim como o podem procedimentos administrativos levados a cabo por órgãos do Sistema Nacional de Proteção ao Consumidor, quanto a delitos contra relações de consumo.
É que, não poucas vezes, o fato histórico subjacente à tipificação de ilícito administrativo configura, ao mesmo tempo, ilícito penal. A autoridade que, no exercício da função de apuração de ilícito administrativo, de caráter disciplinar ou não, tome conhecimento da possível prática de crime de ação pública, à luz dos elementos colhidos em procedimento regular (= conforme as regras jurídicas), deve comunicá-lo à autoridade competente, sob pena de incidir na contravenção do art. 66, inc. I, da Lei das Contravenções Penais, ou nos crimes de prevaricação (art. 319 do Código Penal) ou de condescendência criminosa (art. 320 do Código Penal).
Da mesma forma, o inquérito parlamentar, realizado por Comissão Parlamentar, pode servir de base a acusação criminal, quando o fato apurado no Legislativo seja, aparentemente, ilícito, típico e culpável. Nos crimes contra a propriedade imaterial, a formação judicial do corpo de delito configura forma preliminar ou preparatória do processo penal. Além da licitude do uso suficiente de elementos probatórios produzidos em outras instâncias administrativas, pode também haver dispensa da investigação prévia em inquérito, para efeito de propositura da ação penal, nos termos do que dispõe o art. 12 do Código de Processo Penal. Neste passo, é fundamental tornar patente que a teórica aproveitabilidade jurídica das provas coligidas em todos esses procedimentos alternativos, as quais, bastando a legitimar a instauração da ação penal, tornam prescindível a abertura de inquérito policial, não decorre da aparente incidência do § único do art. 4º do Código de Processo Penal, que preceitua: “Art. 4º. A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. Parágrafo único. A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem seja por lei cometida a mesma função.”
É que, tirante a Comissão Parlamentar de Inquérito, nenhuma dessas outras autoridades todas, não policiais, que colhem as provas úteis em procedimentos administrativos regulados por lei, está investida de função e competência constitucional, nem sequer legal, se esta bastasse por hipótese, para exercício dos poderes de polícia judiciária, nem as colhe nessa condição, senão que age no só desempenho de função e competência meramente administrativas, deferidas pela lei para o fim específico de apuração de ilícitos administrativos, cuja demonstração pode fazer dispensável abertura de inquérito policial, se o mesmo fato histórico demonstrado seja, em tese, também criminoso. Não se trata, pois, de hipóteses de atribuição de competência de polícia judiciária por norma infraconstitucional, à revelia da Constituição da República, mas da previsão constitucional e legal doutras competências, de cujo exercício podem resultar também dados retóricos que, nos termos do ordenamento processual penal, dispensem, por inutilidade consequente, procedimento específico de polícia judiciária. Donde, tais exemplos não se prestam tampouco a confortar, dalgum outro modo, o débil argumento de que a lei poderia dar ao Ministério Público função e competência de polícia judiciária. Submeto, neste ponto, à elevada reflexão da Corte, à luz do art. 5º, incs. XLV e XLVI, da Constituição da República, as repercussões, que tem na espécie, a natureza pessoal, individual e subjetiva, da responsabilidade criminal.Esta singular natureza da responsabilidade penal não pode deixar de refletir-se no perfil do instrumento metodológico de sua apuração, que é a persecutio criminis considerada em todas as suas fases.E uma de suas mais imediatas e vigorosas consequências está em que só se concebe propositura lícita de ação penal, com base exclusiva em elementos reunidos em outras formas de apuração preliminar que não a do inquérito policial, se tal prova contenha indícios que, inculcando materialidade do fato e sua autoria, caracterize justa causa para instauração do processo. E a razão intuitiva é porque a tutela constitucional dos direitos e garantias individuais não permite sujeitar ninguém aos constrangimentos inerentes à pendência do processo criminal, sem suporte probatório mínimo que o torne viável e, como tal, tenha peso axiológico para justificar a consequente restrição à esfera jurídica do réu. Não é só. Conquanto a serventia teórica das provas colhidas alhures, para fim de legitimação da instauração da ação penal, não provenha, como já acentuei, da incidência do disposto no § único do art. 4º do Código de Processo Penal, exige-se lei, válida e constitucional, que discipline os respectivos procedimentos administrativos, para que seus resultados retóricos se tornem aproveitáveis no âmbito criminal e dispensem abertura de inquérito policial. Não é à toa, pois, que todos os exemplos dados são de procedimentos administrativos regulados por lei, que só desta pode emanar valia jurídica de elementos probatórios não coligidos em inquérito policial, para corporificar justa causa ao processo-crime. E, por vê-lo claro, escusam largos latins, bastando a necessária reverência ao disposto nos arts. 1º e 5º, incs. II, LIV e LV, da Constituição da República. No Estado Democrático de direito (art. 1º), ninguém pode comportar-se à margem da legalidade (art. 5º, inc. II). Se, nisso, ao particular vale o princípio de que é permitido tudo o que a lei não lhe proíba, ao Poder Público só dado fazer o que lhe autorize a lei: “É nesse sentido que se deve entender a assertiva de que o Estado, ou o Poder Público, ou os administradores não podem exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção, nem mandar tampouco proibir nada aos administrados, senão em virtude de lei”.E:“[...] é a representação popular, o Legislativo, que deve, impessoalmente, definir na lei e na conformidade da Constituição os interesses públicos e os meios e modos de persegui-los, cabendo ao Executivo, cumprindo ditas leis, dar-lhes a concreção necessária. Por isso se diz, na conformidade da máxima oriunda do Direito inglês, que no Estado de Direito quer-se o governo das leis, e não o dos homens; impera a rule of law, not of men”.Em suma, o Poder Público, no Estado Democrático de direito, só pode agir estritamente secundum legem. Como já adiantei, a conversão da competência – aliás, de todo ausente neste caso – em atos dá-se sempre em procedimentos juridicamente regulados, ou, noutras palavras, “o exercício das funções públicas está sujeito a um iter procedimental juridicamente adequado à garantia dos direitos fundamentais e à defesa dos princípios básicos do Estado de direito democrático”.Assim, ainda quando, por epítrope, se pudesse extrair ao art. 129 da Constituição da República a suposta competência do Ministério Público para apurar a prática de infrações penais, é evidente que só poderia exercida nos precisos termos da necessária disciplina de lei, em procedimento juridicamente regulado, à vista das cláusulas constitucionais do devido processo legal (art. 5º, incs. LIV e LV) e da competência privativa da União para legislar em matéria processual (art. 22, inc. I), que, como é mais que óbvio, abrange o procedimento por observar na primeira fase da persecutio criminis.Vem logo, daí, que são írritas e frustradas, senão até inconcebíveis, as tentativas de regulamentação da matéria por via de resoluções – e aqui me refiro, dentre outras, estaduais e federais, designadamente à Resolução nº 13, de 02.10.2006, do Conselho Nacional do Ministério Público.Dos três grandes modelos existentes para conceber e regular a atuação do órgão encarregado de, com competência de polícia judiciária, cujo poder se concentra na investigação policial, promover a instrução penal preliminar, poderia nosso sistema jurídico ter adotado qualquer dos outros dois – o do juiz instrutor ou o do promotor investigador –, desde que o fizesse mediante particularizada disciplina legal, condizente com a Constituição, sobretudo com o resguardo do direito de defesa.Abrindo parêntese, é preciso convir em que considerar o membro do Ministério Público, ao mesmo tempo, como “advogado sem paixão” e “juiz sem imparcialidade”, segundo a expressiva qualificação de CALAMANDREI, fora exigir-lhe demais. Na condição de parte acusadora, seria humano e natural que nem sempre pudesse conduzir, com objetividade e isenção suficientes, a primeira fase da persecutio criminis, acabando, nesse papel, por causar prejuízos ao acusado e à sua defesa: “A acusação formal, clara e fiel à prova é garantia da defesa, em Juízo, do acusado. Espera-se, então, do acusador público imparcialidade. Tanto que se permite arguir-lhe a suspeição, impedimento, ou outra incompatibilidade com determinada causa penal. É o que se encontra na Lei do Processo. Dirigir a investigação e a instrução preparatória, no sistema vigorante, pode comprometer a imparcialidade. Desponta o risco da procura orientada de prova, para alicerçar certo propósito, antes estabelecido; com abandono, até, do que interessa ao envolvido. Imparcialidade viciada desatende à justiça”.Retomo o raciocínio para encarecer as percucientes observações de RENÉ ARIEL DOTTI:“9ª) O chamado Procedimento Administrativo Investigatório do Ministério Público (ou designação equivalente) ofende o princípio do devido processo legal porque: a) não há prazo de encerramento; b) não há controle jurisdicional; c) o indiciado ou suspeito não tem a faculdade de requerer diligência, em atenção ao princípio da verdade material; d) o sigilo do procedimento é a regra e não a exceção como prevê o CPP; e) um procedimento administrativo formal (portaria, autuação, juntada de documentos, registro de informações, colheita de depoimentos e outros elementos de prova, etc.) para ter força cogente e suscetível de expedir notificações e intimações – inclusive para suspeitos e indiciados, de terminando o comparecimento – exige a previsão legislativa para o seu funcionamento regular, em obediência aos princípios do devido processo legal – no plano geral (CF, art. 5º, LV) – e da legalidade – no plano pessoal (CF, art. 5º, II); f) um procedimento administrativo formal (para investigar crimes) não pode ser objeto de lei estadual, frente à regra constitucional que defere à União, em caráter privativo, a competência para legislar sobre direito processual (art. 22, I)”.
A cláusula do due process of law só tolera investigação ali onde haja lei que a discipline. E, não qualquer lei, senão aquela que sirva à dupla função instrumental do procedimento prévio: averiguar a existência de delito e sua autoria, bem como evitar acusações infundadas.
Como bem ponderado por RENÉ ARIEL DOTTI, a investigação direta pelo Ministério Público, no quadro constitucional vigente, não atende a nenhum daqueles requisitos já arrolados, simplesmente porque, não encontrando válido apoio legal, produziria consequências insuportáveis dentro do sistema governado pelos princípios elementares do devido processo da lei: (i) não há prazo para diligências nem para sua conclusão; (ii) não se disciplinam os limites de seu objeto; (iii) não se submete a controle judicial, porque carece de existência jurídica; (iv) não se assujeita à publicidade geral dos atos administrativos, da qual o sigilo é exceção, ainda assim sempre motivado e fundado em disposição de lei; (v) não prevê e não garante o exercício do direito de defesa, nem sequer a providência de ser ouvida a vítima; (vi) não se subjuga a controle judicial dos atos de arquivamento e de desarquivamento, criando situação de permanente insegurança para as pessoas tidas por suspeitas ou investigadas; (vii) não contém regras para produção das provas, nem para aferição de sua consequente validez; e, do ponto de vista de coisas práticas, (viii) não provê sobre o registro e numeração dos autos, nem tampouco sobre seu destino, quando a investigação já não interesse ao Ministério Público.
Não se deve esquecer, ademais, que há atos instrutórios que, próprios dessa fase antecedente à propositura da ação penal, são irrepetíveis e, como tais, dotados de efeito jurídico-processual absoluto, como o reconhecimento, a juntada de documentos, a busca e apreensão etc., os quais seriam praticados, na hipótese, à margem e à revelia da lei. Como conceber-se, sob o signo do Estado Constitucional, a produção de prova dotada de efeito probatório absoluto que não encontre disciplina em lei?
O saudoso jurista SÉRGIO PITOMBO bem ilustra, sob outros aspectos não menos nevrálgicos, a dificuldade invencível de o Ministério Público exercer funções típicas da polícia judiciária: “No sistema de direito processual penal, o Procurador da República e o Promotor de Justiça não se consideram Autoridade. Não podem eles presidir auto de prisão em flagrante delito; nem usar o instituto da voz de prisão. Não se admite que, em certos casos, concedam fiança. Não se aceita que solicitem ao Poder Judiciário, para si, autorização ou cumpram, de modo direto, mandado judicial de busca e de apreensão. Não guardam poder de ordenar a restituição, quando cabível, de coisa apreendida.
Muito menos pretender a infiltração de agentes seus, em tarefas de investigação. Autoridade, na fase extrajudicial da persecução penal, denominada procedimental, ou de inquérito policial é quem pode exercer, por inteiro, as funções de polícia judiciária, tal como marcadas na Lei Maior. Precisa o Ministério Público, por isso, no correr do pretendido procedimento investigatório e instrutório, que instaurou, requisitar o concurso da polícia judiciária, federal ou estadual. O procedimento, assim, torna-se hibrido, causando tumulto na justiça criminal.”
E relembra que, suposto autorizada apuração direta de infrações penais pelo Ministério Público, ainda assim este continuaria a depender da polícia judiciária, no correr da investigação: “Em síntese, Procuradores da República e Promotores de Justiça necessitam dos serviços das Autoridades policiais, para levar avante o pretenso procedimento preparatório, que venham a iniciar.
Polícia judiciária, havida por inconfiável, os secundando, não obstante fiscalizada e corrigida, de maneira externa, pelo Ministério Público. Mais, ainda, a dúvida de quem faria o controle interno, do mencionado procedimento administrativo ministerial, operacionalizado pela polícia judiciária, a mando e comando dos Procuradores da República e Promotores de Justiça. O artificialismo da ideia, de imaginada atuação administrativa interna do Ministério Público, para a apuração de infrações penais e respectiva autoria, rompe com a lógica. Mostra-se suspeita de outra destinação, para além da propalada busca de eficiência”
Por tudo isso, adverte-se que “[...] as possibilidades de o Ministério Público investigar diretamente dependem da previsão legal de disposições regulando a investigação, de tal sorte que as lesões decorrentes do abuso na investigação possam ser objeto de reclamação perante o Judiciário – princípio da inafastabilidade da jurisdição – e o sistema de freios e contrapesos possa funcionar”.
Aduz-se, ainda, que, podendo oferecer denúncia direta, isto é, sem instauração prévia de investigação policial, poderia o Ministério Público, por via de consequência, investigar diretamente. O argumento, sobre não ter valor no âmbito do Direito Público, não se sustentaria diante da expressa reserva constitucional de competência, outorgada às polícias federal e civil (art. 144), que devem exercê-la mediante o instrumento legalmente regulamentado do inquérito policial.
Alega-se, por fim, que não faria sentido manter o titular da ação penal na posição de mero espectador das investigações desenvolvidas pela Polícia, até porque não seria este o modelo adotado, por exemplo, nos sistemas processuais europeus contemporâneos.
Tal postura, que guarda mais sentido crítico que consistência jurídica, pressupõe a ideia de que o inquérito policial constituiria apenas base para acusação legítima e, nisto, revela, quando menos, visão parcial da realidade. O inquérito é também suporte para arquivamento do procedimento investigatório, quando se verifique sejam ineficazes as provas reunidas, quanto à existência do fato ou definição da autoria, ou logo demonstrem que o fato é inexistente ou atípico, ou, ainda, que há causa de exclusão da antijuridicidade ou de extinção da punibilidade, e, nesses termos, caracteriza poderoso instrumento de defesa e de tutela de direitos fundamentais, na medida em que, em muitos desses casos, a obrigatória decisão judicial de arquivamento é coberta por res iudicata material.
Não creio mereça consideração a referência a modelos estranhos, cuja experiência, ainda quando bem sucedida no contexto cultural em que foram adotados, em nada influi no reconhecimento do perfil do nosso direito positivo, nomeadamente na organização dos Poderes Públicos e no arcabouço processual penal.
É matéria de algum relevo apenas de lege ferenda.E, subentendendo-se a existência de motivos apócrifos, ligados a crítica de eventual ineficiência e, até, a desconfiança quanto ao cumprimento das funções policiais, o certo é que, como já demonstrado, perante textos expressos da Constituição, o Ministério Público não é espectador passivo das investigações criminais, em lhe competindo as importantes e decisivas tarefas de “exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar”, e de “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais” (incs. VII e VIII do art. 129).
Não vejo, em suma, como nem por onde reconhecer ao Ministério Público competência para, mediante procedimento investigativo destinado à apuração de infrações penais, como medida preparatória à instauração de ação penal, exercer poderes de polícia judiciária, reservados aos organismos policiais, sobre cujas correspondentes atividades têm, no entanto, poder de requisição e fiscalização: “Os referenciados regramentos constitucionais determinam, destacadamente, os campos de atuação de cada uma dessas instituições estatuais atuantes na persecutio criminis, distinguindo entre a atividade instrutória, atribuída à Polícia Judiciária, e a dela provocatória e supervisora, concedida ao Ministério Público”.
Concedo, porém, consoante de há muito já o fiz no julgamento do PELUSO, j. 19/12/2005 (in RTJ 198/579 e Lex-JSTF 327/515). HC nº 93.224, que, à luz da vigente ordem jurídica, possa o Ministério Público realizar, diretamente, atividades de investigação da prática de delitos, para fins de preparação e eventual instauração de ação penal, em hipóteses excepcionais e taxativas, desde que se observem certas condições e cautelas tendentes a preservar os direitos e garantias assegurados na cláusula constitucional do justo processo da lei (due process of law), como, aliás, o admitem precedentes da Corte.
Tenho, contudo, com a devida vênia, que tal excepcionalidade exige predefinição de limites estreitos e claros, a começar pela necessidade de que a atuação do Ministério Público se desenvolva e documente em procedimento formal, de regra público e sempre submetido ao controle judicial, nos mesmos termos em que se documentam e desenvolvem os inquéritos policiais. Lembro que a Corte já se viu compelida a garantir ao patrono de pessoa investigada o acesso aos autos de investigação conduzida, durante dois anos, pelo Ministério Público, mas até então marcada por sigilo oposto também ao próprio Judiciário: “ADVOGADO. Investigação sigilosa do Ministério Público Federal. Sigilo inoponível ao patrono do suspeito ou investigado. Intervenção nos autos.
Elementos documentados. Acesso amplo. Assistência técnica ao cliente ou constituinte. Prerrogativa profissional garantida. Resguardo da eficácia das investigações em curso ou por fazer.
Desnecessidade de constarem dos autos do procedimento investigatório. HC concedido. Inteligência do art. 5°, LXIII, da CF, art. 20 do CPP, art. 7º, XIV, da Lei nº 8.906/94, art. 16 do CPPM, e art. 26 da Lei nº 6.368/76 Precedentes. É direito do advogado, suscetível de ser garantido por habeas corpus, o de, em tutela ou no interesse do cliente envolvido nas investigações, ter acesso amplo aos elementos que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia 52 Rel. Min. EROS GRAU, DJ 04/09/2008. HC nº 89.837, Rel. Min. CELSO DE MELLO; HC nº 91.613, Rel. Min. GILMAR MENDES), já infra citados. judiciária ou por órgão do Ministério Público, digam respeito ao constituinte” (HC nº 88.190, Rel. Min. CEZAR PELUSO, DJ de 06.10.2006).
Essas condições primárias são essenciais, mas não bastam para legitimar investigação pelo Ministério Público, a qual precisa estar ainda justificada por qualquer das competências funcionais previstas na Constituição da República e na legislação subalterna, no preciso sentido de que os atos de polícia judiciária sejam praticados em razão da competência já atribuída para investigar, administrativamente, os próprios membros e servidores da instituição, as autoridades e agentes policiais, cujo comportamento seja, em tese, criminoso, ou para suprir omissão ou recusa dessas autoridades em instaurar inquérito policial, pois, em todas essas hipóteses, a prática de eventual delito pode, figurada no mesmo fato ou ato, coexistir com a prática de infração disciplinar ou funcional.
É que, como se viu, o mesmo fato histórico pode comportar mais de uma qualificação e consequência jurídico-normativas. Em palavras descongestionadas, admito que o Ministério Público promova atividades de investigação de infrações penais, como medida preparatória para instauração de ação penal, desde que o faça nas seguintes condições: 1) mediante procedimento regulado, por analogia, pelas normas que governam o inquérito policial; 2) que, por consequência, o procedimento seja, de regra, público e sempre supervisionado pelo Poder Judiciário; 3) e que tenha por objeto fato ou fatos teoricamente criminosos, praticados por membros ou servidores da própria instituição (a), ou praticados por autoridades ou agentes policiais (b), ou, ainda, praticados por outrem, se, a respeito, a autoridade policial, cientificada, não haja instaurado inquérito policial (a).
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ADPF: www.adpf.org.br
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