Nota da ADEPOL/RJ:
A matéria abaixo elaborada pelo eminente magistrado da justiça federal de São Paulo Ali Mazloun cai, como uma luva, na espetaculosidade da Operação Guilhotina, ora realizada na Cidade do Rio de Janeiro.
Wladimir S. Reale
Presidente
Aos juízes compete única e exclusivamente combater a injustiça. As rotulações dadas às operações policiais, no auge das famosas espetacularizações, serviram apenas para estigmatizar pessoas, fomentar preconceitos, enodoar julgamentos. Com efeito, uma operação pode ser um sucesso de público e de mídia, mas um fiasco processual, com resultados pífios no âmbito judicial: muitas prisões preventivas, delações obtidas mediante “acordos”, apreensões de bens, todavia, poucas condenações definitivas. Que retomem os magistrados com firmeza a condução do processo. É simples e funciona assim: a Polícia investiga, o Ministério Público acusa, o advogado defende, e o juiz, após garantir absoluta paridade de armas entre acusação e defesa, julga com coragem e isenção.
O ano que se inicia exige novas posturas. Adversidades naturais e humanas desafiam a inédita gestão feminina da presidente Dilma Rousseff. Ao maior desastre natural brasileiro, com quase mil mortos somente em uma região do estado do Rio de Janeiro, justapõem-se embates políticos e intrincadas questões de alta densidade jurídica e social que demandam solução segura, rápida e eficiente. O caso Cesare Battisti e sua problemática internacional; a celeuma em torno da Ficha Limpa; os royalties do petróleo; a reforma política; a liberdade de imprensa; a sobrevivência do Enem; união homoafetiva; aborto; fiscalização e defesa das fronteiras; o crescente tráfico transnacional de drogas, entre tantos outros, são alguns dos assuntos que estão a exigir tirocínio técnico e boa dose de bom senso. Certamente esses temas também passarão pelo crivo do Supremo Tribunal Federal, agora com o quadro completo com a nomeação do preparado magistrado de carreira Luiz Fux.
A acertada nomeação de José Eduardo Cardozo para o cargo de ministro da Justiça também constitui importante passo dado pelo governo federal em direção ao combate ao crime organizado. Trata-se de político experiente e respeitado profissional do Direito, que bem apontou para a necessidade de um pacto entre União, estados e municípios para melhorar a segurança pública. Com acerto realçou qual será o lema da atuação da Polícia Federal sob seu comando: primar pela boa investigação e o fim da espetacularização das operações. Para além da diretriz, Cardozo faz eco às advertências de Gilmar Mendes, da Suprema Corte, enviando importante lembrete não apenas às suas próprias hostes, mas especialmente a todos os juízes: o clamor das ruas não espelha, necessariamente, clamor por justiça.
As “operações-espetáculo” desservem o interesse público, na medida em que não passam de mera ilusão de ótica para fortalecer a crença de se estar reprimindo o crime. Entretanto, o que os olhos vêem não é o mesmo que a realidade demonstra: crescimento da criminalidade em todos os setores. Passada a magia, a frustração irrompe quando se constata que o julgamento judicial não caminha de mãos dadas com o julgamento das ruas. É preciso retomar a seriedade. Deveras, a agressão a um bem jurídico tutelado pela lei penal (prática de um crime), amplamente divulgada, cria no corpo social forte expectativa de punição. E, quando esta não vem, a sensação de impunidade é dilacerante. Em razão da escalada da delinquência, a Justiça Criminal, aos olhos da população, transforma-se em uma espécie de vitrine através da qual o Poder Judiciário passa a ser visto, avaliado e julgado. Porém, a posição do juiz pode ser negativa ou positiva à pretensão punitiva do Estado, alternativa que por si só, redunda, ocasionalmente, em pressões cujo único intento seria o de pautar a decisão judicial, gerar sua deflexão.
Evidente que a repercussão do delito potencializa naturais entrechoques da opinião pública com a decisão judicial divergente. É que esta só pode ser extraída da prova constante dos autos, ao passo que aquela, no mais das vezes, deriva de noticiários distantes da análise técnica e serena do fato. Para um “juiz populista” é preferível prender a soltar, condenar a absolver. Para ele, com ou sem provas, a “opinião pública” sempre tem razão. O assombroso consórcio entre juiz e acusador, infelizmente, ainda é uma realidade no cenário forense. Entretanto, a culpa dessa distorsão promotora de injustiças não pode ser debitada à imprensa, mas, sim, à fraqueza do próprio juiz. Sua tibieza frente ao sensacionalismo promovido por setores da mídia não pode comprometer a liberdade de imprensa. O Judiciário prevarica quando procura transferir a terceiros a responsabilidade por seus próprios erros.
O juiz deve ter plena consciência de que a postura de independência e imparcialidade o colocará, vez ou outra, em situação desconfortável, em rota de colisão com a opinião pública. Provocará atritos com os órgãos da persecução penal. Contudo, isso não deveria nunca demovê-lo de seguir com isenção o iter do devido processo legal (due processo of Law), tomando o atalho da sedução pelos aplausos passadiços para cair na armadilha de reduzir sua judicatura a uma reles chancelaria de pedidos da Polícia e do Ministério Público. Um juiz que julga de acordo com o noticiário de TV, homologa tudo que o Estado-acusação quer e anda afinado com o “direito achado nas ruas”, não passa de um tartufo togado.
Por conseguinte, diante do aludido alerta do Ministro da Justiça, é preciso, à evidência, reavaliar paradigmas construídos a partir da ampla divulgação midiática de investigações ocorridas neste último decênio. Prejulgamentos destruíram reputações. Pessoas foram jogadas na fogueira da injustiça. Inocentes pagaram um alto preço pelo espetáculo do qual foram protagonistas compulsórios. Investigações policiais ou de CPIs, realizadas sob holofotes cinematográficos, merecem redobrada cautela de seus juízes naturais. Lembrem os magistrados que o combate à criminalidade é tarefa do aparato da persecução penal do Estado, não dos juízes. Como dizia Rui Barbosa, “razão de estado, interesse supremo, como quer que te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”.
Ali Mazloum é juiz federal em São Paulo, especialista em Direito Penal e professor de Direito Constitucional.
Revista Consultor Jurídico, 16 de fevereiro de 2011
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